sexta-feira, 29 de maio de 2009

Retrato

O esmalte vermelho estava ainda fresco, tanto quanto a brisa que soprava lá fora. Os olhos marejados contemplavam a chuva que já não caía mais, e as palmas quentes se sujeitavam ao ar frio que vinha da janela aberta.

Ar puro. Inspirou o mais fundo que pôde, esquecendo a tosse que roncava no peito havia alguns dias. Havia muito mais lhe apertando o peito que a tosse seca de outono. A armação prateada dos óculos estava prestes a se partir, observou. Precisava ir até a ótica. “Armação”. A palavra em letras cursivas desenhou-se na tirinha de papel afixada com imã na geladeira, conduzida por uma ponta de grafite extremamente fina. Extravagâncias.

Extravagâncias. Sobre a mesa posta do café da manhã, despertava a pizza de rúcula, tomates secos e mussarela de búfala do dia anterior. Intocada. Faltava-lhe apetite, paladar, sabor, cor. Vida.

O toque estridente do telefone celular era inconfundível. Uma. Duas. Três. Quatro vezes. “Uma chamada perdida”, diziam os caracteres brancos na tela pequena de fundo azul. Impassividade.

A dor, a consciência, a vontade e o orgulho sombreavam a existência, quase que a ocultavam. Na sala, no apartamento gelado, na cidade acinzentada, na face da Terra, tudo se movia alheio à vontade daqueles olhos marejados, daqueles dedos com esmalte vermelho, daquele aperto no peito.

Quem reinava, soberana, era ausência. De apetite, de paladar, de sabor, de cor, de vida. Dela mesma.

9 comentários:

Camilla disse...

Você tá de esmalte vermelho não tá?

Beijo e traz o Xerxes de aniversário pra mim!!

Ricardo Aiolfi disse...

bom texto

parece meio 'auto-biográfico'

Darshany L. disse...

dferente do que vc costuma escrever... gostei!

Vanessa Pinho disse...

adorei.

Cláu disse...

imaginei um quadro disso.

Mar e Ana disse...

imaginei um quadro disso. [2]

quem mandou o título ser "retrato"?

Anônimo disse...

Nossa, parece o começo daqueles filmes cults hauahau onde a personagem central se acha em caminhos estranhos =P

E fazia tempo que você não escrevia.

Bjos!

Anônimo disse...

Você já reparou o quanto você não passa de uma menininha infantil "romantiquinha" - daquelas que qualquer pessoa com cérebro despreza - tentando parecer descoladinha e, o pior, escrever bem? Você já reparou o quanto vive a vida dos outros, ao invés de se concentrar na sua? Tanta inveja é sinal de vazio interior. E a julgar pela sua espera telefônica, você não deve ter nada mesmo. Se toca, toscona!

Anônimo disse...

inssossa