Ar puro. Inspirou o mais fundo que pôde, esquecendo a tosse que roncava no peito havia alguns dias. Havia muito mais lhe apertando o peito que a tosse seca de outono. A armação prateada dos óculos estava prestes a se partir, observou. Precisava ir até a ótica. “Armação”. A palavra em letras cursivas desenhou-se na tirinha de papel afixada com imã na geladeira, conduzida por uma ponta de grafite extremamente fina. Extravagâncias.
Extravagâncias. Sobre a mesa posta do café da manhã, despertava a pizza de rúcula, tomates secos e mussarela de búfala do dia anterior. Intocada. Faltava-lhe apetite, paladar, sabor, cor. Vida.
O toque estridente do telefone celular era inconfundível. Uma. Duas. Três. Quatro vezes. “Uma chamada perdida”, diziam os caracteres brancos na tela pequena de fundo azul. Impassividade.
A dor, a consciência, a vontade e o orgulho sombreavam a existência, quase que a ocultavam. Na sala, no apartamento gelado, na cidade acinzentada, na face da Terra, tudo se movia alheio à vontade daqueles olhos marejados, daqueles dedos com esmalte vermelho, daquele aperto no peito.
Quem reinava, soberana, era ausência. De apetite, de paladar, de sabor, de cor, de vida. Dela mesma.