sexta-feira, 29 de maio de 2009

Retrato

O esmalte vermelho estava ainda fresco, tanto quanto a brisa que soprava lá fora. Os olhos marejados contemplavam a chuva que já não caía mais, e as palmas quentes se sujeitavam ao ar frio que vinha da janela aberta.

Ar puro. Inspirou o mais fundo que pôde, esquecendo a tosse que roncava no peito havia alguns dias. Havia muito mais lhe apertando o peito que a tosse seca de outono. A armação prateada dos óculos estava prestes a se partir, observou. Precisava ir até a ótica. “Armação”. A palavra em letras cursivas desenhou-se na tirinha de papel afixada com imã na geladeira, conduzida por uma ponta de grafite extremamente fina. Extravagâncias.

Extravagâncias. Sobre a mesa posta do café da manhã, despertava a pizza de rúcula, tomates secos e mussarela de búfala do dia anterior. Intocada. Faltava-lhe apetite, paladar, sabor, cor. Vida.

O toque estridente do telefone celular era inconfundível. Uma. Duas. Três. Quatro vezes. “Uma chamada perdida”, diziam os caracteres brancos na tela pequena de fundo azul. Impassividade.

A dor, a consciência, a vontade e o orgulho sombreavam a existência, quase que a ocultavam. Na sala, no apartamento gelado, na cidade acinzentada, na face da Terra, tudo se movia alheio à vontade daqueles olhos marejados, daqueles dedos com esmalte vermelho, daquele aperto no peito.

Quem reinava, soberana, era ausência. De apetite, de paladar, de sabor, de cor, de vida. Dela mesma.

domingo, 17 de maio de 2009

Smile like you mean it.

Ela não sabia sorrir.

Ela não sabia sorrir em fotos, nem rir de piadas, nem cumprimentar os outros mostrando os dentes. Não ria da vida nem para a vida, não ria dos outros, não ria dela mesma.

Só sabia se enfiar nas desgraças que tinha construído com tanto esforço e só queria chamar a atenção do mundo chorando pelos cantos. O máximo que ela conseguia era esboçar um sorriso de canto de boca, às vezes, ou fazer caretas. Quando não conseguia, ela simplesmente virava o rosto.

Como é que ela queria tanto ser feliz sem saber sorrir?

Juro que não entendo gente que não sabe sorrir.



Ps - E aí eu entro no Orkut e ele me diz "Smile. That's all". =)

sábado, 16 de maio de 2009

Tinha um vampiro no ônibus.

É, um vampiro. Ele tinha cara de vampiro, jeito de vampiro, roupas de vampiro. Usava um daqueles sobretudos compridos, pretos. Calça social preta, pernas cruzadinhas e sapato preto.

O cabelo era meio ondulado, penteado para trás com esforço, alguns fios meio rebeldes. O olhar era taciturno mas os olhos eram meio esbugalhados, como aqueles vampiros de filme. Só não eram vermelhos. Deviam ser lentes de contato.

Ele parecia meio assustado e a certa altura resolveu colocar os óculos, de lentes grossas e coisa e tal. Se ele usava lentes de contato, podia ter comprado lentes com grau, de uma vez.

Mas o tal vampiro era um cara meio irônico. Ele mantinha as mãos unidas sobre o colo, como quem faz uma prece. E também, percebi quando estava passando, uma tatuagem que devia ir do cotovelo até o pulso, um tribal meio maluco, mas que terminava numa cruz.

Eu realmente vou postar isso?

terça-feira, 12 de maio de 2009

E então, por alguns instantes, ela se permitiu acreditar que tudo seria daquele jeito...